quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Portugal na última Cruzada: a batalha de Matapão

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs









Atendendo ao pedido do Papa Clemente XI e após observar as grandes vitórias que a Santa Liga alcançava contra os invasores muçulmanos, um pequeno país de grandes horizontes decidiu tomar parte nessa incrível epopeia.

Portugal participava assim da última Cruzada.

No relato das batalhas de cristãos contra os muçulmanos, desde a grande batalha de Viena até a de Belgrado, acompanhamos dezenas de nações que se uniram para a defesa da Cristandade.

Portugal ainda não tinha podido participar da Santa Liga, pois se mantivera ocupado em renhidas batalhas na Ásia e na América, as quais eram também de grande importância para a causa católica.

Pouco tempo se passara depois que os luso-brasileiros conquistaram a vitória definitiva sobre os protestantes holandeses, e outras nações tentaram se infiltrar em nosso Brasil.

A Providência permitira que se fizessem grandes descobertas de ouro e pedras preciosas em nosso País, especialmente no local que ficou conhecido como “as Minas Gerais”.

A convergência entre um período de paz e a abundância do precioso metal pode ser hoje admirada nas igrejas e em outros monumentos representativos do crescimento brasileiro dessa época.

Finalmente aliviado das vultosas despesas decorrentes dos descobrimentos, Portugal passou a promover grandes investimentos em nossa nação.

A modernização do estaleiro da Ribeira, em São Salvador da Bahia, foi essencial para ali se construírem galeões de até 800 toneladas.



O Papa Clemente XI (1700-1721) organizou as armadas cristãs contra os turcos em 1716 e 1717
O Papa Clemente XI (1700-1721) organizou
as armadas cristãs contra os turcos em 1716 e 1717
O porto chegou a comportar a construção de até um grande navio por ano.1

Foi assim que, em 1715, os baianos puderam construir uma de suas grandes obras-primas: o navio Nossa Senhora do Pilar, considerado na época o melhor de toda a Cristandade.

A esse navio, símbolo da Terra de Santa Cruz, poderia ser atribuída mais alta função do que enviá-lo para uma Cruzada?

A partida da esquadra portuguesa

Como relatamos (Cfr. Um Papa santo convoca à vitória na ilha de Corfu  e Em Petrovaradin, a aliança católica dá golpe vital à ofensiva turca), a frota que Portugal enviou para a Batalha de Corfu chegou tarde a essa ilha, e os navios turcos já estavam em retirada.

No dia 28 de abril do ano seguinte, enquanto o príncipe Eugênio de Saboia empreendia a épica batalha pela reconquista de Belgrado,2 a esquadra portuguesa partiu novamente rumo aos mares gregos para prestar auxílio à Armada veneziana.

Sob o comando do Conde do Rio Grande, a frota portuguesa compunha-se de onze embarcações, tendo à frente a nau capitânia Nossa Senhora da Conceição.

O Conde de São Vicente comandava o recém-construído navio brasileiro Nossa Senhora do Pilar, de oitenta e quatro canhões, pronto para participar de uma Cruzada, numa batalha que seria a última a merecer verdadeiramente tal nome.

No dia 10 de junho a nau capitânia aportou em Corfu, onde a esperava com suas galés André Pisani, Capitão-General da República de Veneza, além de cinco navios dos Estados Pontifícios e dois do Grão-Duque da Toscana.

Pouco depois chegaram de Malta outros navios comandados pelo Cavaleiro de Bellefontaine, escolhido pelo Pontífice para capitanear a armada auxiliar.

O príncipe Eugênio de Saboia na conquista de Belgrado, a 22 de Agosto de 1717.. Enquanto as batalhas se travavam no mar, os exércitos católicos avançavam por terra.
O príncipe Eugênio de Saboia na conquista de Belgrado, a 22 de Agosto de 1717.
Enquanto as batalhas se travavam no mar, os exércitos católicos avançavam por terra.
Assim que se noticiou a passagem dos portugueses pelos mares da Itália, o Papa Clemente XI emitiu um Breve em agradecimento ao rei Dom João V pelo seu zelo em defender a Cristandade dos iminentes perigos em que se encontrava.

Em 2 de julho, próximo ao Cabo de Matapão, a esquadra se encontrou com a grande Armada de Veneza, que já havia entrado duas vezes em combate contra os turcos naqueles dias.

Contudo, um vento rijo sempre os afastava, impedindo um desfecho.

Unidas finalmente todas as forças, Pisani assumiu o comando geral.

Os navios venezianos precisavam de urgentes reparos, que foram feitos graças à ajuda dos portugueses.

Foi assim possível aprontar a esquadra para o dia seguinte.

O inimigo estava próximo, e os cristãos ardiam em desejo de lutar.

Nessa mesma tarde avistaram-se alguns navios inimigos, e no dia seguinte apareceu toda a Armada dos turcos.

Favorecidos pelo vento, os otomanos logo se estenderam numa imensa linha de combate.

Enquanto a esquadra portuguesa se esforçava para tomar posição, os venezianos se defrontavam com grande dificuldade para manobrar, e acabaram se posicionando muito aquém da linha planejada.

Os turcos teriam auferido grandes vantagens se tivessem atacado, mas o visível incremento das tropas cristãs suspendeu-lhes o ímpeto.

Quadro de batalha contra piratas da Barbária, vassalos dos otomanos,
a quem pertencia a maior parte das fragatas otomanas em Matapão
nos permite fazer uma ideia daquela batalha naval.
Os dois grupos combatentes permaneceram como que imobilizados durante vários dias.

Diante da inação dos turcos, a Armada Cristã aportou próximo ao Cabo de Matapão para se reabastecer, ali permanecendo por mais quatro dias.

Somente em 18 de julho, ao pôr-do-sol, a Capitânia de Portugal e o seu navio Fiscal, que estavam de vigia fora do porto, deram alerta à Armada sobre a reaproximação do inimigo.

A Batalha de Matapão

A esquadra turca se compunha de vinte e duas sultanas de grande força e vinte e seis navios, e na manhã seguinte começou a avançar a todo pano em direção à esquadra dos cristãos.

Esta contava com vinte e cinco embarcações venezianas, que somadas aos navios auxiliares perfaziam um total de trinta e quatro.

Os venezianos logo assumiram a vanguarda, enquanto os portugueses, juntamente com dois navios da Santa Sé e uma fragata veneziana, se posicionavam na retaguarda.

Nau de 60 peças do início do reinado de D. João V
Nau de 60 peças do início do reinado de D. João V
Eram oito horas da manhã quando teve início a troca de tiros de canhão na vanguarda.

Os turcos preferiam manter-se à distância, o que fazia com que os tiros de ambos os lados tivessem pouco efeito.

Forçado a fazer uma manobra para corrigir sua má posição, o navio da dianteira veneziana, Madonna dell’Arsenale, virou em roda, acabando por se distanciar.

Os venezianos julgaram tratar-se de uma estratégia do comando, e seguiram imediatamente o seu exemplo.

Somente a frota que seguia com os portugueses permaneceu em seu lugar, pois não havia recebido nenhuma ordem para tal movimento.

Essa evolução fez as posições se inverterem, ficando os portugueses na vanguarda dos cristãos.

O vento também cessou inteiramente, e durante bom tempo os venezianos se viram incapazes de retornar à linha de combate.

O Grão-Paxá muçulmano aproveitou para avançar com sua Capitânia, uma poderosa embarcação de cento e dez peças e 1.400 homens de equipagem.

Seguido por mais quinze de suas sultanas, romperam num furioso ataque às naus de Portugal e da Santa Sé.

Os portugueses tiveram de resistir por horas na vanguarda, respondendo incessantemente com formidável fogo sobre os inimigos.

Durante toda a batalha, o Conde de São Vicente fez o possível para se aproximar dos turcos com o Nossa Senhora do Pilar, tornando-se sempre o atacante e o alvo principal, pois seu navio era o mais bem equipado e poderoso.3

Às cinco horas da tarde, diante da resistência portuguesa que lhes causava grandes estragos, os turcos desanimaram e logo começaram a se retirar.

Mas o navio Nossa Senhora do Pilar, apesar de quase destroçado, fez um arrojado avanço sobre os inimigos, seguindo-os e batendo-os.

As demais naus portuguesas fizeram o mesmo, mas não puderam alcançar o inimigo.

Por fim, a chegada de um tempo forte obrigou-os a cessar a perseguição e retornar ao porto.

Nau inglesa em luta contra piratas da Barbária, no último quartel do século XVII
Nau inglesa em luta contra piratas da Barbária, no último quartel do século XVII
A fuga dos turcos dessa batalha, associada à trégua que fizeram após a perda de Belgrado, privaram os portugueses de uma maior glória.

Os venezianos não conseguiram ser mais que testemunhas dos feitos dos portugueses nessa batalha.

Embora tenha ficado muito avariada, a esquadra portuguesa registrou a morte de apenas oitenta homens, além de cento e vinte feridos, tripulantes em sua maioria do Nossa Senhora do Pilar.

Já os turcos tiveram mais de cinco mil baixas.

Após essa épica batalha, nossa esquadra rumou para Lisboa, onde aportou em 6 de novembro, com a glória de ter ajudado a livrar a Cristandade de um grande perigo.

O Papa celebrou muito essa vitória e fez grandes elogios à nação portuguesa, a cujo Senhor Rei D. João V – “verdadeiro Rei Católico, verdadeiro filho da Igreja” – agradeceu paternalmente por tão grande realização.

E ao Conde do Rio Grande mandou um Breve, no qual lhe agradecia pelo zelo e valor com que sua Armada triunfara da esquadra inimiga.


Principais fontes consultadas:

Gabinete Histórico, que a sua majestade fidelíssima, o Senhor Rei Dom João VI oferece Fr, Cláudio da Conceição – Tomo VII – Desde 1717 até 1729, Impressão Régia (Lisboa), 1820.

Mário Domingues, D., João V, o homem e a sua época, Editora Romano Torres, 1964.

Notas:

1.http://revistapesquisa.fapesp.br/2011/11/30/por-mares-sempre-navegados/

2. Ver o último artigo publicado na edição de junho/2018.

3. https://threedecks.org/index.php?display_type=show_ship&id=7848


(Autor: Ivan Rafael de Oliveira, Catolicismo n° 815, novembro 2018)



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