terça-feira, 26 de abril de 2022

Godofredo de Bouillon descreve ao Papa Pascoal II a tomada de Jerusalém (1099) ‒ I

Godofredo de Bouillon. Fundo: igreja do Santo Sepulcro
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








Godofredo e Raimundo Daimbert ao senhor Pascoal, Papa da Igreja Romana, a todos os bispos e a todo o povo cristão, ao arcebispo de Pisa, o duque Godofredo, agora, pela graça de Deus, Defensor da Igreja do Santo Sepulcro; Raimundo, conde de Saint Gilles, e todo o exército de Deus, que está na terra de Israel, saudação.

Multiplicai vossas súplicas e orações diante de Deus com alegria e ação de graças, pois Deus manifestou sua misericórdia em nossas mãos cumprindo o que prometeu em tempos antigos.

De fato, após a captura de Nicéia, todo o exército, composto por mais de trezentos mil soldados, dali partiu. E, embora esse exército fosse tão grande que ainda que tivesse tomado a Romania toda em um só dia, teria bebido a água de todos os rios e comido tudo aquilo que cresce. Mas, o Senhor o conduziu em meio a tão grande abundância que um carneiro se vendia por um centavo e um boi por doze centavos ou menos.

Além disso, embora os príncipes e reis dos sarracenos tenham se levantado contra nós, pela vontade de Deus foram facilmente vencidos e dominados.

E como alguns se orgulhavam desses sucessos, Deus levantou contra nós Antioquia, inexpugnável à força humana. Ele ali nos deteve por nove meses e de tal maneira fomos humilhados no cerco que apenas uma centena de bons cavalos sobrou em nosso exército inteiro.
Godofredo de Bouillon, afresco, Palazzo Trinci, Foligno, Itália

Deus, entretanto, abriu para nós a abundância de sua bênção e misericórdia e nos levou para a cidade, entregando em nossas mãos os turcos e todos os seus bens.

Na medida em que pensávamos que estes foram adquiridos por nossa própria força e não por um auxílio de Deus, a fim de louvá-lO dignamente pelo feito, fomos cercados por tão grande multidão de turcos que ninguém atrevia aventurar-se em qualquer ponto da cidade.

Por outro lado, ficamos tão enfraquecidos pela fome que dificilmente alguns puderam abster-se de comer carne humana. Seria fastidioso narrar todas as desgraças que sofremos naquela cidade.

Mas Deus deitou os olhos sobre o Seu povo a quem tinha tanto castigado e misericordiosamente consolou-o.

Assim, primeiramente revelou-nos, como recompensa por nossa tribulação e como penhor de vitória, Sua lança que tinha ficado escondida desde os tempos dos Apóstolos.

Em seguida, fortificou de tal modo os corações dos homens, que os que não conseguiam andar por causa de fome ou doença foram dotados de força para tomar armas e lugar corajosamente contra o inimigo.

Godofredo de Bouillon. Fundo: viela de Jerusalém
Depois de triunfar sobre o inimigo, como o nosso exército estava se desfazendo em Antioquia por doença e cansaço e foi especialmente prejudicado por dissensões entre seus líderes, seguimos para a Síria, onde atacamos Barra e Marra, cidades dos sarracenos, e conquistamos as fortalezas daquele país.

E enquanto lá nos atrasávamos, foi tão grande a fome no exército que o povo cristão passou a comer os corpos já podres dos sarracenos.

Finalmente, por divina admoestação, entramos no interior da Hispania (região à margem direita do rio Orontes, que se estende em direção ao leste, perto da antiga Apaméia), e a mão abundante, misericordiosa e vitoriosa do Pai onipotente estava conosco.

As cidades e fortalezas do país pelas quais passávamos enviaram-nos embaixadores com muitos presentes e se ofereceram para ajudar-nos e entregar-nos suas fortalezas.

Mas nosso exército não sendo grande e havendo um desejo unânime de apressar a ida a Jerusalém, aceitamos as suas promessas e os fizemos nossos tributários.

Uma dessas cidades, situada no litoral, tinha mais homens do que todo nosso exército. E quando os que se encontravam em Antioquia, Laodicéia e Archas souberam como a mão do Senhor estava conosco, muitos do exército que haviam permanecido nas cidades seguiram-nos a Tiro.

Assim, protegidos e ajudados pelo Senhor, continuamos até Jerusalém.




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quarta-feira, 13 de abril de 2022

A tomada de Trípoli e a destruição da biblioteca máxima das crendices islâmicas

Porta da Ponte, Sébastien Mamerot, Les Passages d’Outremer, Fr 5594, BnF
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
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O historiador Ibn abi Tayyî (1160 – 1235 aprox.), da seita xiita, deixou um escrito sobre o impacto da tomada de Trípoli pelos Cruzados, liderados pelo rei Balduíno e os heróis Tancredo e Saint-Gilles.

A cidade, e, sobretudo, a sua biblioteca, eram o grande polo dos erros e superstições islâmicos, aonde acorriam ulemás (doutores) e sufis (curandeiros-bruxos) para se aprofundarem em seus sofismas e nas artes mágicas.

“Havia em Trípoli – escreveu Ibn abi Tayyî – um palácio da Ciência que não havia igual em país algum pela sua riqueza, beleza ou valor.

“Meu pai me contou que um sheik de Trípoli disse ter estado com Frakhr al-Mulk b'Ammar em Shayzar e que ele desmaiou quando soube da queda Trípoli.

“Recuperando-se, chorava copiosamente. ‘Nada me aflige tanto, dizia ele, quanto a perda do palácio da Ciência. Lá havia três milhões (sic) de livros, todos de teologia, ciência corânica, hadiths, de adabs e ainda outros cinquenta mil exemplares do Corão e vinte mil comentários sobre o Corão feito por Alá todo-poderoso’.

“Meu pai acrescentava que esse palácio da Ciência era uma das maravilhas do mundo.

“Os Banu'Ammâr haviam investido nele enormes riquezas; ali trabalhavam cento e oitenta copistas dia e noite. Os Banu'Ammâr tinham agentes em todos os países que compravam para eles livros seletos.

“Em verdade, naquele tempo Trípoli inteira era o palácio da Ciência. Os grandes espíritos de todos os países iam à cidade, todas as ciências eram cultivadas e protegidas pelos príncipes. Por isso, lá iam os adeptos da ciência corânica.

“Quando os francos entraram em Trípoli e a conquistaram, eles queimaram o palácio da Ciência porque um de seus padres malditos tendo visto esses livros ficou horrorizado.

“Ele julgou ter achado o Tesouro dos Alcorões. Ele estendeu uma mão para pegar um volume: era um Corão; estendeu a mão para outro lado e era ainda um Corão, em direção a um terceiro e era ainda a mesma coisa.

“De onde ele concluiu: ‘não há senão exemplares do Corão dos muçulmanos nesta casa’. Quando ele disse isso os francos queimaram-na.

“Entretanto, conseguiu-se salvar alguns livros que foram levados a países muçulmanos.

“Eles destruíram todas as mesquitas e estiveram a ponto de massacrar todos os habitantes muçulmanos. (...)

“Quanto ao governador e algumas de suas tropas, eles se refugiaram no palácio do Emir, e se defenderam durante alguns dias. Depois pediram um armistício, obtiveram-no, foram expulsos da cidade, e foram para Damasco.

“Depois os francos reuniram os notáveis que depois de se confessarem ricos foram golpeados até que todos entregassem suas fortunas. Muitos morreram torturados.

“A cidade foi dividida em três partes, uma para os genoveses, outra para Balduíno, rei dos Francos em Jerusalém, e outra para Saint-Gilles, o maldito.

“A tomada de Trípoli e o acontecido à sua população consternaram todo o mundo islâmico.

Vento desvia frota egípcia (1105)
Vento desvia frota egípcia (1105)
“Houve reuniões nas mesquitas em duelo pelos mortos. Todo o mundo ficou tomado de medo e persuadido da conveniência de migrar.

“Um grande número de muçulmanos partiu para o Iraque e para a Djéziré. Alá sabe melhor (...).

“Quando a frota egípcia chegou a Tiro oito dias depois, soube da queda de Trípoli por um golpe da sorte.

“Jamais partira do Egito frota semelhante. Ela levava reforços, víveres, dinheiro, para aprovisionar Trípoli pelo espaço de um ano.

“Quando o comandante da frota soube da queda de Trípoli repartiu as provisões e o dinheiro que tinha trazido entre Tiro, Saïda, Beirute e as outras praças fortes muçulmanas, e levou a frota de volta para o Egito.

“Fakir al-Mulk b.'Ammâr, senhor de Trípoli, durante a queda da cidade se reuniu com o emir Ibn Munqidh, que lhe oferecia hospitalidade. Ele foi até Djabala e se estabeleceu ali após trazer provisões e armas.

“Tancredo foi atacá-lo e lhe deu duros combates. O cadí Fakhr al-Mulk pediu socorro aos príncipes vizinhos, fazendo-lhes sentir a perfídia dos Francos, e que se eles ocupassem essa cidade, eles iriam à procura de outra, e que seu poder cresceria a ponto de poder conquistar toda a Síria e expulsar os muçulmanos.

“A carta era extensa, ela fez sangrar os corações e chorar os olhos, mas ninguém lhe respondeu. (...)”.

 (Fonte: “Orient et Occident au temps des Croisades” de Claude Gahen, “Collection historique” dirigée par Maurice Agulhon et Paul Lemerle, éditions Aubier Montaigne, Paris, 1992, rubrique Documents, pages 219 à 223 apud Internet Medieval Sourcebook.




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