terça-feira, 6 de dezembro de 2022

São João de Capistrano: pregador de Cruzada, János Hunyadi e o cerco de Belgrado - 2

São João de Capistrano na batalha de Belgrado. Igreja dos Bernardinos, Cracóvia.
São João de Capistrano na batalha de Belgrado.
Igreja dos Bernardinos, Cracóvia.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








Continuação do post anterior: János Hunyadi e o cerco de Belgrado - 1



As notícias dos colossais preparativos logo chegaram ao sucessor de São Pedro. Calixto III enviou, então, um monge franciscano, São João de Capistrano,(4) a pregar uma nova cruzada contra os infiéis.

Septuagenário como o Papa, homem de baixa estatura, fraco, exausto, mas movido por um ardor juvenil, o santo contagiava com seu entusiasmo os corações de seus ouvintes, embora — coisa notável — falasse apenas latim e italiano.

Conseguiu reunir por volta de 40 mil camponeses húngaros e alguns voluntários de outras nações, partindo com Hunyadi, que conduzia sua tropa de 10 mil cavaleiros.

Com a guarnição de Belgrado e outros reforços, o exército cristão chegou a congregar 75 mil homens, a maioria fracamente armada, mas animados de santo zelo pela defesa da Cristandade.

Maomé II estabelece o cerco de Belgrado

Os turcos chegaram a Belgrado semanas antes do esperado. Eram entre 100 e 200 mil homens, trazendo consigo 300 canhões, 22 dos quais de grande envergadura. Uma frota de 200 embarcações balouçava nas águas do Danúbio.

Testemunhas da época narram seu espanto por toda a parafernália presente no acampamento turco, tanto de material bélico quanto para outros fins. Matilhas inteiras de cães foram trazidas para consumir os corpos dos cristãos, que se previam muito numerosos.

Os infiéis pareciam dispostos não apenas a ocupar Belgrado, mas toda a Hungria e outros reinos vizinhos.(5)

Quando o exército católico chegou à cidade, no início de julho de 1456, encontrou-a já sitiada pelos otomanos, e ameaçada pela frota estacionada no Danúbio.

A primeira tarefa de Hunyadi foi quebrar o bloqueio naval, o que ele conseguiu em 14 de julho, afundando três grandes galés otomanas e capturando duas dezenas de navios. Franqueou ele assim a entrada de tropas e de suprimentos na cidade.

São João de Capistrano na batalha de Belgrado (detalhe). Igreja dos Bernardinos, Cracóvia.
São João de Capistrano na batalha de Belgrado (detalhe).
Igreja dos Bernardinos, Cracóvia.
Enquanto isso se dava, a artilharia pesada dos turcos perfurava as muralhas de Belgrado em diversos pontos, enchendo os fossos de escombros.

No dia 21 de julho, Maomé II ordenou um assalto total, que começou no ocaso e continuou por toda a noite.

Os janízaros(6) lideraram o ataque, e a ferocidade de seu avanço conduziu-os para dentro das muralhas. Hunyadi, entretanto, dirigiu a defesa com grande habilidade.

Ordenou aos defensores que jogassem lenha, cobertores saturados de enxofre, pedaços de gordura animal e outros materiais inflamáveis dentro do fosso, e ateassem fogo.

Logo uma parede de chamas separou os janízaros que lutavam dentro das muralhas de seus companheiros que ainda estavam no exterior.

Os que ocupavam o fosso morreram queimados, ou ficaram seriamente feridos; e os janízaros foram massacrados pelas tropas de Hunyadi. Com a calmaria da manhã seguinte, mais reforços cristãos puderam chegar à cidade.

Fato inesperado provoca início da batalha

No dia seguinte, enquanto os turcos enterravam seus mortos, algo de inesperado aconteceu.

Contrariando as ordens de Hunyadi para não deixarem o interior da fortaleza, alguns grupos de cruzados escaparam pelos rombos das muralhas, tomaram posição diante da linha turca e começaram a provocar os soldados inimigos, gritando e atirando flechas sobre eles.

Cavaleiros turcos tentaram, sem sucesso, dispersar os cristãos. Então, mais cruzados se uniram aos que já estavam fora das muralhas.

São João de Capistrano na batalha de Belgrado (detalhe). Igreja dos Bernardinos, Cracóvia.
São João de Capistrano na batalha de Belgrado (detalhe).
Igreja dos Bernardinos, Cracóvia.
O que se iniciara como um incidente isolado tornou-se uma batalha em grande escala.

São João de Capistrano, que de início tentara trazer seus homens de volta ao interior das muralhas, logo se viu cercado por dois mil cruzados.

Então, começou a liderá-los em direção às linhas otomanas, gritando: “O Senhor que fez o início cuidará do desfecho!”.

Os turcos logo se viram diante de uma furiosa avalanche humana. Apanhados de surpresa nessa estranha mudança dos acontecimentos e paralisados por um medo inexplicável, fugiram.

A guarda pessoal do sultão, formada por cinco mil janízaros, tentou conter o pânico e recapturar o acampamento; mas o exército de Hunyadi já tinha se unido à inesperada batalha, e os esforços turcos tornaram-se vãos.

O próprio sultão foi gravemente ferido, ficando inconsciente. Protegidos pela escuridão, os turcos retiraram-se às pressas, carregando seus feridos.

As baixas turcas em Belgrado foram inéditas. Eles perderam 50 mil homens na batalha, e outros 25 mil abatidos pelos sérvios durante a fuga. As perdas entre os defensores de Belgrado totalizaram menos de 10 mil.

Vitória cristã comemorada em toda Cristandade

A derrota do sultão foi saudada como gloriosa vitória pela Cristandade. O Te Deum foi entoado nas igrejas, os sinos tocaram e grandes fogueiras foram acesas em comemoração.

O Papa Calixto III, quando soube do sucesso do comandante húngaro, descreveu Hunyadi como “o mais impressionante homem que o mundo tem visto em 300 anos”.

Depois de mais um triunfo, chegou o dia da partida para a eternidade daquele homem providencial. Contagiado pelo tifo que grassava no acampamento, János Hunyadi entregou sua alma a Deus em 4 de agosto de 1456.

O túmulo do heroico Janos Hunyadi continua rodeado pelo reconhecimento do povo húngaro
O túmulo do heroico Janos Hunyadi continua rodeado pelo reconhecimento do povo húngaro
No leito de morte, como São João de Capistrano lhe apresentasse a morte como recompensa desta vida, Hunyadi respondeu:

“Vivi e lutei para achar meu lugar de descanso, como campeão emérito na tenda de meu Senhor”. O sultão derrotado, sabendo da morte do herói católico, depois de alguns momentos de silêncio exclamou: “Éramos inimigos, mas sua morte é para mim dolorosa; pois nunca o mundo viu um homem como ele!”. Naqueles tempos o valor e a honra eram reconhecidos mesmos nos inimigos, quando neles existentes.

“Defendei, caros amigos, a Cristandade e a Hungria de todos os inimigos. Não vos deixeis levar por intrigas internas. Se gastardes vossas energias em altercações, selareis vosso próprio destino e cavareis a cova de nossa própria nação”.(7) Foi esse o último conselho de Hunyadi a seus compatriotas.

Notas:
1. Vide Catolicismo, abril/2004.
2. WEISS, Juan Bautista. Historia Universal – Vol. VIII. Barcelona: Tipografia La Educación, 1929, p. 31.
3. SETTON, Kenneth Meyer. The Papacy and the Levant, Vol. II. Philadelphia: The American Philosophical Society, 1978. p. 164.
4. Vide Catolicismo, outubro de 2007.
5. SETTON, Kenneth Meyer. The Papacy and the Levant, Vol. II. Philadelphia: The American Philosophical Society, 1978. p. 176.
6. Elite guerreira formada por cristãos pervertidos, muitas vezes raptados ainda jovens do seio de suas famílias.
7. KOVACH, Tom R. Ottoman-Hungarian Wars: Siege of Belgrade in 1456. Military History Magazine, 1996. Disponível em http://www.historynet.com/ottoman-hungarian-wars-siege-of-belgrade-in-1456.htm.


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terça-feira, 22 de novembro de 2022

János Hunyadi e o cerco de Belgrado - 1

János Hunyadi, comandante dos cruzados libertou Belgrado do assédio turco
János Hunyadi, comandante dos cruzados
libertou Belgrado do assédio turco
Esse extraordinário herói húngaro e São João de Capistrano, derrotando o sultão Maomé II em Belgrado, sustaram avassaladora investida muçulmana na Europa


No ano de 1453, a cidade de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, caiu sob o domínio dos turcos otomanos. Os vencedores submeteram os sobreviventes muitos deles monges e religiosas — a um cruel e bárbaro tratamento.

 A famosa igreja de Santa Sofia tornou-se cenário de uma sangrenta orgia, depois da qual o local sagrado passou a servir de estábulo para os cavalos dos turcos. Ficava claro para a Cristandade que os seguidores de Maomé não descansariam enquanto não estendessem seu domínio sobre a Europa.

Mas a Divina Providência, que permitira tal derrota para castigo da Cristandade decadente, suscitaria, no momento e no lugar certos, os homens certos para obstar os planos dos infiéis.

Vitórias iniciais contra os turcos

János (João, em português) nasceu provavelmente no ano 1387. Seu pai, Serba Vojk, leal servidor do rei húngaro Sigismundo, recebera como prêmio o castelo de Hunyadvár, na Transilvânia, tendo desde então mudado seu nome, Serba Vojk, para Hunyadi.

Desde a infância, János Hunyadi, a quem trataremos apenas pelo sobrenome, mostrou-se sempre muito piedoso. Seus companheiros de Corte o viam frequentemente levantar-se durante a noite e passar horas de joelhos na capela real, em oração.

Ele cresceu como um soldado. Inicialmente lutando como mercenário na Itália, dedicou-se depois a enfrentar o Império Otomano, o maior inimigo de seu país e da Santa Igreja, na época.

Até 1441, suas campanhas militares foram apenas um prelúdio de sua longa guerra contra os otomanos, o que lhe valeu a fama de “Flagelo dos Turcos”. Em uma dessas campanhas, tentou unir forças com o grande herói albanês Skanderbeg,(1) só não o fazendo por intrigas de um príncipe sérvio.(2)

Em 1437, o rei Sigismundo nomeou-o defensor do sul da Hungria, desde a Transilvânia do Leste até o mar Adriático. O rei seguinte, Ladislau V, tornou-o capitão de Nandorfehervár (atual Belgrado, capital da Sérvia) e voivode (príncipe) da Transilvânia.

Avanço maometano nos Bálcãs

Batalla de Belgrado (Nandorfehervar)
Batalla de Belgrado (Nandorfehervar)
Nos anos que precederam essa nomeação de Hunyadi efetuou-se um gradual avanço turco sobre os Bálcãs, em direção à Hungria. Vilas inteiras eram destruídas, milhares de pessoas mortas, e muitas outras, incluindo mulheres e crianças, capturadas como escravas.

Nomeado comandante, Hunyadi decidiu que já era tempo de pôr um fim às invasões turcas.

Guerreiro incansável, aparecia de improviso nas regiões ocupadas, surpreendia o inimigo com táticas inusitadas, infundia temor mesmo nos grandes exércitos, acompanhado por tropas seletas mas reduzidas.

Vitoriosa tática dos “vagões blindados”

Certa feita, deparou-se com a quase totalidade dos contingentes turcos da Europa, sob o comando do terrível Sehabeddin, súdito do mesmo Maomé II que depois conquistaria Constantinopla. A ordem deste era conquistar a Moldávia, a Valáquia e a Transilvânia.

Hunyadi posicionou suas tropas em formação retangular, tendo os flancos e a retaguarda bem protegidos por vagõesblindados. Inovação utilizada por um líder da Boêmia anos antes, os vagões eram preenchidos por soldados, e ligados por correntes para evitar a penetração pelo inimigo.

No auge da refrega, os vagões foram subitamente empurrados sobre o adversário, causando, com seu movimento, grande pânico entre as tropas turcas. Os soldados desembarcaram e cumpriram sua missão. Mais uma grande vitória obtida pelo herói húngaro.

A notícia das conquistas de Hunyadi espalhou-se por toda a Europa, trazendo esperança para os reinos que ainda sofriam sob a dominação otomana. No ano seguinte, o general húngaro venceu mais seis batalhas, livrando a Sérvia da presença turca.

Janos Hunyadi, monumento em Pecs, Hungria
Janos Hunyadi, monumento em Pecs, Hungria
Apesar dos aplausos das outras potências europeias, nenhuma delas ofereceu ajuda significativa. Apenas a Santa Sé levou a sério essa tão importante causa. Calixto III, ancião espanhol recém-eleito para o sólio pontifício, soube perceber a gravidade do momento.

Considerou como obrigação enfrentar os turcos, fazendo o propósito de expulsá-los de Constantinopla, e até, se possível fosse, da própria Terra Santa.

“O mundo tinha mudado desde os velhos tempos de Urbano II, mas no peito do Papa ancião batia o coração de um verdadeiro cruzado. Em carta ao novo rei húngaro Ladislau, o Papa declarou sua resolução, mesmo ao preço de seu próprio sangue se necessário, de que ‘estes inimigos insidiosos do nome Cristão sejam inteiramente expulsos não só da cidade de Constantinopla, recentemente ocupada, mas também de todos os confins da Europa’”.(3)

Após tomar Constantinopla, o jovem Maomé II decidiu, em 1455, que era tempo de esmagar definitivamente a Hungria. E o ponto nevrálgico era a fortaleza de Nandorfehervár. “Em dois meses, estarei jantando tranquilamente na capital húngara”, teria dito o sultão.

continua no próximo post: São João de Capistrano: pregador de Cruzada, János Hunyadi e o cerco de Belgrado - 2


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terça-feira, 11 de outubro de 2022

Pio II: Papa que pregou as Cruzadas até morrer

Pio II. Bernardino di Betto, 'Pinturicchio' (1454–1513)
Pio II. Bernardino di Betto, 'Pinturicchio' (1454–1513)
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
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"Ah, se estivessem agora aqui Godofredo, Balduino, Eustáquio, Hugo, Boemundo e Tancredo, e aqueles outros esforçados varões que um dia reconquistaram Jerusalém, penetrando com suas armas por entre os exércitos inimigos!

"Verdadeiramente, não nos teriam deixado pronunciar tantas palavras, mas se teriam levantado, exclamando com voz fervorosa, como outrora em presença de Urbano II, nosso predecessor: ‘Deus o quer! Deus o quer!’.

"Mas vós aguardastes em silêncio o fim do discurso, e nossas exortações não parecem ter-vos movido. ...

"Se o acreditais convenientemente, não recusaremos consagrar nosso corpo enfermo e nosso ânimo fatigado a Cristo Nosso Senhor para esta venturosa expedição.

"Por entre os acampamentos, por entre as fileiras de soldados, em meio dos mesmos inimigos, queremos fazer-nos levar alegremente em uma liteira, se assim nos aconselhais, e não nos limitaremos a andar com o espírito apoucado à caça de bonitas frases".

Estas palavras, proferidas por Pio II em 1459, ao pregar a cruzada em Mântua, resumem todo o pontificado desse Papa que, segundo Pastor e outros autores, centrou-se inteiramente na idéia da guerra aos turcos infiéis.

Pio II subiu ao trono pontifício em 1458, e se defrontou com uma situação internacional extremamente grave, dada a ameaça maometana.

O novo Papa era, entretanto, um homem cujo porte estava na proporção dos acontecimentos. Eneas Silvio Piccolomini nascera de uma família nobre empobrecida.

Seu pontificado, todo "drapé" no heroísmo, na solidão e na tragédia, e portanto em valores diametralmente opostos aos dominantes na Itália do século XV, parece transcender os resíduos de humanismo que lhe possam ter restado de sua vida passada.

Tendo em vista as notícias que chegavam do Oriente a respeito do incessante avanço dos turcos, a atitude do Papa durante as solenidades de sua posse fora "reservada e quase melancólica".

Os relatos dos embaixadores que Pio II recebeu nos dias seguintes deixam ver que estava ele preocupado desde então por um pensamento único: a guerra contra os turcos. Logo no mês seguinte, publicou uma bula convidando todos os príncipes para celebrarem um congresso em Mantua, a fim de deliberarem sobre uma cruzada europeia.

O Pontífice em pessoa dirigiu-se àquela cidade. Antes, entretanto, fundou duas novas ordens religiosas de cavalaria: a Ordem da Santíssima Virgem Maria de Belém e a Societas Jesu Christi.

Formou outrossim o plano de trasladar a Ordem Teutônica da Prússia para as fronteiras turcas.

Em Mantua, entretanto, o esperavam grandes decepções. De todos os reis e príncipes cristãos a quem Pio II havia convidado insistente e repetidamente, nenhum havia comparecido. Semelhante falta de consideração para com a pessoa do Papa fazia temer o pior desenlace.

Dentre os próprios cardeais, alguns logo se afastaram de Mantua com diversos pretextos. E estes não eram os piores, pois vários outros procuraram criar entraves ao congresso, qualificando de "pueril" o projeto da cruzada.

Alguma mudança favorável se iniciou, nada menos que 4 meses depois, quando acudiu em pessoa ao congresso o Duque de Milão, Francisco Sforza. Após muitas vicissitudes, publicou Pio II a bula "Ecclesiam Christi", pela qual se declarava uma guerra de três anos contra os turcos e se concedia uma indulgência plenária a todos os que dentro de oito meses tomassem parte na cruzada; e alguns dias depois deixava o Pontífice a cidade, com a saúde quebrantada, não sem antes publicar outra bula em defesa da constituição monárquica da Igreja.

A cruzada, que não nascera de um élan de entusiasmo, mas sim da energia de ferro de Pio II, logo depois do congresso começou a evanescer-se.

Já o Imperador, ao qual incumbia em primeiro lugar a obrigação de defender a Cristandade, não se apresentara porque estava fomentando na Hungria uma revolução, a qual contrariava precisamente os interesses da guerra aos infiéis.

O rei da França estava em dissensão em relação à Santa Sé, por causa da questão de Nápoles, e ameaçou várias vezes convocar um concílio contra Pio II.

Os apoios mais fortes do Pontífice para a cruzada eram o Rei legítimo da Hungria, o Duque de Borgonha e os príncipes italianos. Estes últimos, entretanto, perdiam-se em permanentes manobras políticas.

Em Florença e Milão era muito forte o partido dos que se opunham à cruzada, pois achavam que a luta contra os mouros era uma excelente ocasião para enfraquecer sua rival Veneza, mais diretamente exposta ao perigo: nada melhor do que deixá-la sozinha frente a eles. O embaixador de Milão chegou a dizer:

"Aqui se considera como uma desgraça que os turcos hajam conquistado a Bósnia; mas não se contempla de forma alguma como um infortúnio que os venezianos tenham que roer esse osso". E na própria Veneza havia correntes que se opunham à cruzada.

Apenas destoava deste ambiente morno Skanderbeg, "cujo nome sozinho enchia os turcos de terror". Concomitantemente aos esforços de Pio II, ele iniciara nova série de hostilidades contra os muçulmanos.

Pio II resolveu colocar-se ele mesmo à frente da cruzada, para arrebatar o mundo com este rasgo de ousadia, e assim levar atrás de si a expedição contra os inimigos da Fé.

Foi-lhe então possível obter duas importantes alianças: um tratado ofensivo firmado entre o Doge de Veneza e o Rei da Hungria, Matias Corvino; e uma aliança tríplice entre a Santa Sé, o duque de Borgonha e o Doge, pela qual se comprometiam a guerrear os turcos e não ajustar a paz senão de comum acordo.

Queimando as etapas, em 21 de outubro de 1463 foi lida a bula da cruzada, escrita "com juvenil entusiasmo".

Os meses que se seguiram, entretanto, foram cheios de decepções. Somente as pessoas de médio a baixo estado se puseram a caminho, principalmente da Alemanha, onde a comoção popular foi tão poderosa que, como refere a crônica de Hamburgo, "o povo abandonava suas carretas e arados e se dirigia a Roma, para lutar contra os turcos".

Veneza se fez esquiva, e o Duque de Borgonha, pressionado por Luís XI, inimigo declarado da expedição, aproveitou a ocasião para retirar-se, quebrando o solene voto que fizera. As cidades italianas não cumpriam suas promessas. Irrompeu uma peste, que por toda parte fazia grandes estragos.

No próprio Colégio cardinalício, apenas três prelados apoiavam o empreendimento. Pouco depois o Papa sofreu novo ataque de gota, e era opinião comum que lhe seria impossível resistir às fadigas da viagem.

Florentinos chegaram a colocar em mãos do sultão cartas interceptadas aos venezianos, nas quais se revelavam os planos daquela potência marítima, enquanto se dizia que estava a caminho de Veneza um enviado turco, que vinha tratar sobre a paz. Contudo, de muitos países afluíam milhares de pessoas do povinho.

Pio II. Catedral de Siena. Bernardino di Betto, 'Pinturicchio' (1454–1513)
Pio II. Catedral de Siena.
Bernardino di Betto, 'Pinturicchio' (1454–1513)
O apelo do Papa tinha comovido as nações tão profundamente, que "se os príncipes e os grandes tivessem sido os mesmos de três séculos antes, todo o Ocidente se teria posto em movimento".

Muitos, entretanto, vinham sem armas nem recursos, e assim foi preciso encarregar o Bispo de Creta de persuadir a voltarem para suas pátrias os que eram inúteis para a guerra.

Inquebrantável e indiferente às pressões dos cardeais, dos familiares e dos médicos, o Papa tomou a cruz na Basílica Vaticana em 18 de junho de 1464.

Medalhas cunhadas na ocasião mostram o Pontífice na proa de um navio, bendizendo com uma mão e tendo à outra o estandarte da cruz, com a legenda: "Exsurgat Deus et dissipentur inimici ejus.

"Adeus, Roma! Não tornarás a ver-me vivo!" — disse comovido o Papa. Embarcou por via fluvial, não desembarcando nem à noite, porque qualquer movimento lhe era extremamente doloroso. Aos padecimentos corporais somavam-se os do espírito.

O Cardeal Forteguerri — do qual se julgava que estivesse navegando para Ancona, porto onde se deveria fazer o embarque para o Oriente — se apresentou ao segundo dia de caminho, anunciando que as galeras de Pisa ainda não estavam armadas.

E correu que muitos cruzados, que haviam empreendido a expedição sem recursos e sem se formar ideia das dificuldades vindouras, voltavam a seus países.

Para evitar a Pio II o deprimente espetáculo daqueles fugitivos, fechavam-se as cortinas de sua liteira todas as vezes que passava alguma tropa deles.

Em Loreto, ofereceu o Papa a Nossa Senhora um cálice de ouro, pedindo-lhe a graça da saúde para proveito da Cristandade. Entrou finalmente em Ancona, o porto de embarque.

Pio II instalou-se no palácio episcopal, junto à Catedral de São Ciríaco, que havia sido edificada no lugar de um antigo templo de Vênus.

Da altura em que se levanta aquela antiga basílica se pode contemplar a velha cidade, o amplo mar e pitorescas margens, e "parece como se ali soprassem já as auras da Grécia e como se o sol irradiasse com o brilho dos países orientais".

Nesse cenário se deu o desenlace final da tragédia gloriosa do Pontífice, pois, se seu pontificado foi todo um encadeamento de desenganos, estes se multiplicaram especialmente nos últimos dias de sua vida.

No fundo, Pio II estava completamente só.

Todos tentaram dissuadir o Pontífice. Os cardeais e os médicos diziam que ele morreria dois dias após o embarque. Os mentores de sua corte e os diplomatas lhe lembravam que Luís XI poderia convocar um concílio contra ele — uma ameaça, aliás, reiterada várias vezes. Ele declarou que sua resolução era irrevogável.

Por outro lado, a própria estrutura de alianças que formava o arcabouço da cruzada estava em evanescença.

Permaneceram verbalmente ligados à expedição apenas Veneza e Milão, mas sua contribuição efetiva ia sendo postergada.

Os cardeais, cada um dos quais devia armar uma galera, também fugiam a seus compromissos; e percebendo que o Papa poderia estar mortalmente enfermo, já se estavam ocupando das negociações relativas ao futuro conclave.

Os armamentos feitos para a cruzada tinham saído tão defeituosos, que de antemão era impossível pensar em tomar a ofensiva.

Em Lepanto, um século depois, ao início da batalha o vento favorecia os muçulmanos, mas logo ele se inverteu, o que foi considerado excelente presságio para os cristãos. Na cruzada de Pio II, entretanto, todos os ventos sopravam contra, bem como todas as circunstâncias e até os imponderáveis.

Em Ancona não havia alojamento suficiente e faltava água. Por causa das elevadas temperaturas, em breve declarou-se uma enfermidade pestilencial, que não só arrebatou muitos dos cruzados que andavam lutando uns contra os outros, mas também penetrou na casa dos cardeais, fazendo muitas vítimas entre os de suas comitivas.

Só ao cabo de três semanas inteiras chegaram os navios de Veneza, mas já encontraram apenas um pequeno resíduo de tropas de cruzados. A maioria deles já havia abandonado a cidade. Isto, segundo o Cardeal Ammanati, representou o golpe mortal para o Pontífice.

O Papa mandou que suas próprias galeras, com 5 cardeais, saíssem ao encontro das naus venezianas, e com muita fadiga se fez levar a uma janela de seu palácio.

À vista das naves que se acercavam, apoderou-se dele uma profunda tristeza, e exclamou soluçando: "Até este dia faltou-me uma esquadra para embarcar, e agora haverei de ser eu quem falte à esquadra".

Poucos dias depois recebeu o Santo Viático. Em 14 de agosto de 1464 reuniu em torno de si os cardeais, e com suas últimas forças os exortou a prosseguir na santa empresa à qual havia consagrado sua vida.

À noite, depois de ter recebido a extrema-unção e de ter recomendado novamente a continuação da cruzada, expirou suave e tranquilamente.

(Fontes:
Ludwig von Pastor, "Historia de los Papas" - Ed. G. Gili, Buenos Aires, 1949.
Rohrbacher, "Histoire de l’Église Catholique" - Societé Generale de Librairie Catholique, Bruxelles, 1885.
"Enciclopédia Universal Ilustrada" - Espasa Calpe, Madrid.)


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terça-feira, 27 de setembro de 2022

Proezas portuguesas contra os mouros

Dom Afonso II, rei de Portugal
Dom Afonso II, rei de Portugal
Luis Dufaur
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No tempo de el-rei Afonso II foram vencidos em Salácia (Alcácer do Sal) mais de 60.000 mouros.

E na célebre batalha do Salado, em que el-rei D. Afonso IV de Portugal ajudou nervosamente a el-rei de Castela, morreram 200.000, pelo cômputo mais escasso.

Reinando D. Afonso V, cercou el-rei de Fez a Alcácer Ceguere, com 30.000 cavalos e inumeráveis de pé, mas saindo de dentro pouco mais de 30 cavaleiros portugueses, mataram tantos que os outros, com medo, levantaram o cerco.

A mesma felicidade se viu na tomada de Ceuta em tempo de el-rei Dom João I, e nas de Arzila e Tânger em tempo do dito D. Afonso V, e nos famosos sítios que sustentaram nossos capitães nestas praças, e na de Mozagão, e nas de Diu, Calecute, Chaul, Columbo, Cananor, Cochim, Malaca, contra mui poderosos inimigos.

No cerco de Diu, que sustentou o grande capitão Antônio da Silveira, sendo Fernão Penteado ferido gravemente na cabeça, foi ao cirurgião para que o curasse.

E achando-o ocupado na cura de outros, enquanto aguardava a sua vez, ouviu estrondo de um rebate que os turcos davam.

Não lhe sofrendo o coração não se achar nele, correu àquela parte onde, envolvido na refrega, ganhou segunda ferida grave na cabeça.

Com que apertado, tornou ao cirurgião, a quem achou ainda mais ocupado que antes.

E como neste tempo os turcos apertassem muito com os nossos, ele tornou a acudir com grande alvoroço, onde recebeu terceira cutilada no braço direito; e veio curar-se de todas três.

Dom Afonso IV, rei de Portugal
Dom Afonso IV, rei de Portugal
De sorte que assim ia este soldado buscar mais feridas, como se, achando o cirurgião ocioso, quisesse dar-lhe em que se ocupar, e mais falta fazia ao seu natural a briga do que à sua cabeça o sangue, querendo antes ferir-se depressa do que curar-se devagar.

A tarântula, ainda depois de esmagada, salta, se lhe tangem; este animoso guerreiro, ainda rota a cabeça, pulava se ouvia estrondos militares, porque eram música para ele.

No mesmo cerco, outro português, cujo nome se lhe não sabe, acabando-se-lhe as balas e não tendo à mão com que carregar o mosquete, abalou e arrancou um dente.

Usando-o como bala, fez o tiro e acertou em um turco, para o qual não foi favo doce, senão bocado amargoso, isto que saiu da boca deste leão.

Adaptara na boca do mosquete o dente da sua, mandando-lhe que mordesse ao longe, já que não podia de perto.

Outros muitos casos semelhantes omito, porque ao meu intuito bastam os referidos.

Agora o que esperamos é que a última e total ruína do império otomano se deva também, por eleição divina, às armas portuguesas, conforme os mesmos mouros temem e se diz terem disso tradição antiga (Veja-se Sebastião de Paiva, na sua "Monarquia").



(Autor: Padre Manuel Bernardes, "Nova Floresta" - Lello & Irmão, Porto, 1949)


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