terça-feira, 7 de janeiro de 2020

A Primeira Comunhão de Vivien no campo de batalha e morte


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








Todo o poema “La Chanson de Guillaume” gira em torno de uma batalha desenvolvida por Guilherme do Nariz Curvo contra os sarracenos de Deramé, na planície de Larchamp.

Vivien atira-se à luta acompanhado de seu primo Girart. A batalha é calorosa e os franceses são dizimados. Ao cair da tarde, Vivien envia Girart a pedir ajuda a Guilherme.

O conde Vivien perdeu 10 homens, dos 20 que lhe restavam. Os outros perguntaram:

— Que faremos na batalha, amigos?

Disse Vivien:

— Em nome de Deus, senhores, escutai-me. Enviei Girart levando uma mensagem. Hoje mesmo vereis Guilherme ou Luís, o piedoso. Com um ou outro venceremos os árabes.

— Avante, pois, valoroso marquês — responderam eles.

E ei-los que marcham contra o inimigo.



Os pagãos colocaram Vivien em grande perigo. De seus 10 homens, não deixam um só vivo. É segunda-feira à noite, e ele fica só na peleja. Tendo permanecido só, com seu escudo, ele os atormenta com cutiladas repetidas. Com sua espada, ele abate uma centena.

— Não chegaremos ao final — diziam os pagãos — enquanto deixarmos seu cavalo vivo debaixo dele.

Eles o perseguem através dos montes e vales, como o caçador acua um animal selvagem.

Um grupo o surpreende no meio de um pequeno vale.

Atiram sobre ele flechas e dardos agudos, que se enterram no corpo de seu cavalo.

Um bárbaro, montado em rápido cavalo, avança pelo meio do vale. Três vezes ele brandiu a lança que tem na mão direita, e numa quarta vez a lançou.

O projétil se enterra no lado esquerdo da cota de malhas, fazendo saltar 30 escamas.

Vivien recebe no corpo uma grave ferida, e sua insígnia branca lhe escapa das mãos. Jamais ele a reerguerá.

Ele coloca a mão atrás de si, sente a haste e extrai o dardo de seu corpo. Ele atinge o pagão nas costas e lhe enterra o ferro nos rins. De um só golpe ele o faz cair morto.

— Adeus, patife! Bérbere perverso! — brada o jovem Vivien — Não retornarás mais a teu país, e jamais te vangloriarás de ter matado um nobre de Luís.

Depois ele tira sua espada e retorna a combater. Quando ele golpeia as cotas de malha e os elmos, seus golpes os abatem até o chão.

— Santa Maria, Virgem Mãe e Donzela, enviai-me Luís ou Guilherme.

Deus, Rei da glória, a quem devo a vida, vós que nascestes da Virgem Maria e cujo corpo foi criado em união com as Três Pessoas;

vós que pelos pecadores sofrestes sobre a Cruz;

que fizestes o céu e as estrelas, a terra e o mar, o sol e a lua, Eva e Adão para povoar o mundo, tão verdadeiramente como sois o verdadeiro Deus, impedi-me de ser tentado a recuar um só passo. Antes, que eu perca a vida.

Fazei que eu observe meu voto até a morte, e que, graças à vossa bondade, não o atraiçoe.

Santa Maria, Mãe de Deus, tão verdadeiramente que carregais Deus como vosso filho, protegei-me, por vossa santa piedade, para que os vilões sarracenos não me matem.

Logo que pronunciou essas palavras, se arrependeu:

— Tive um pensamento tolo, querendo evitar a morte. Nosso Senhor não agiu assim, Ele que sofreu, por nossa Redenção, a morte dos crucificados.

Não devo, Senhor, pedir um adiamento da morte, posto que Vós mesmo não quisestes isso. Enviai-me Guilherme de Nariz Curvo ou Luís, que governa a França. Graças a ele nós obteremos a vitória.

O calor era forte, como em maio, durante o outono. Os dias eram longos, e ele jejuava havia três dias. Sofria os tormentos da fome e da sede. O sangue claro escorria de sua boca e da chaga que tinha ao lado esquerdo.

Não havia água nas proximidades; a menos de quinze léguas, não conseguiria encontrar nem riacho nem fonte; não havia senão água salgada, das ondas marinhas.

No entanto, no meio da planície corre um vale com água lamacenta, brotada de uma rocha à beira-mar, que os sarracenos turvaram com seus cavalos. Está suja de sangue e de miolos.

O bravo Vivien corre para lá e, inclinando-se, toma a contragosto aquela água salobra.

Os inimigos fazem chover sobre ele os golpes de lança, mas a cota é sólida e lhe protege o busto. Somente suas pernas e seus braços recebem mais de vinte ferimentos.

Ele então se reergue, como um javali feroz, e tira a espada que lhe pende ao lado. Defende-se com coragem, mas os outros o atormentam como os cães a um javali.

A água salobra que ele bebeu, e que não pode reter, lhe sai pela boca e pelo nariz. Ele sofre tanto, que sua vista se turva e ele perde a direção.

Para acabar com sua bravura, os pagãos o cercam mais de perto.

Os inimigos o cobrem de golpes de lança e flechas de aço, por todas as partes. Elas se cravam em seu escudo, tão numerosas que o conde não o pode manter à altura de sua cabeça, e o deixa escorregar para os pés.

Lançando setas agudas, dardos e ferros, os inimigos despedaçam a cota do conde.

O aço cortante fende o ferro leve de seu peito coberto de malha. Suas entranhas saem para fora.

Como ele sente que seu fim está próximo, roga a Deus misericórdia.

Vivien caminha através da planície, arrastando suas entranhas entre seus pés e segurando-as com a mão esquerda.

Seu elmo afunda até a altura do nariz. Em sua mão direita ele segura uma lâmina de aço, vermelha da copa à ponta e até à bainha ensanguentada.

Já atormentado pela agonia da morte, ele caminha sustentado por sua espada.

Pede com fervor a Jesus Todo-Poderoso de lhe enviar Guilherme, o bom francês, ou o Rei Luís, valente guerreiro.

— Verdadeiro Deus de glória, unido em Trindade,

Tu que nasceste da Virgem Maria e foste criado em união com as Três Pessoas,

Tu que foste crucificado pelos pecadores, defende-me, ó Pai!

Por tua santa bondade, para que eu não seja tentado a recuar um passo sequer na batalha, envia-me, Senhor, Guilherme do Nariz Curvo, porque ele sabe dirigir uma batalha.

Deus, nosso Pai, Rei glorioso e forte, que jamais me venha a idéia de recuar um passo por medo da morte.

Um bérbere, vindo pelo pequeno vale e dando galope a seu cavalo rápido, fere na cabeça o nobre barão, com uma lança de aço que leva na mão direita, e seus miolos se espalham pela grama.

Vivien cai de joelhos. É uma grande perda a morte de um tal homem!

Os pagãos, surgindo de todas as partes, fazem em pedaços o seu cadáver. Eles o levam e o colocam sob uma árvore, ao longo do caminho, para que os cristãos não o achem mais.

No campo de Aliscans, o exército cristão, comandado por Guilherme d’Orange — Guilherme do Nariz Curvo — tinha sido derrotado pelos sarracenos.

Podiam-se contar apenas quatorze sobreviventes. Próximo a uma fonte, em um prado, jazia um jovem, quase menino, que apesar disto era um guerreiro que nunca havia recuado.

Tratava-se de Vivien, sobrinho de Guilherme, a quem ele amava como a um filho.

Percorrendo o campo de batalha, Guilherme reconhece Vivien e o crê morto, mas este faz um leve movimento. Docemente o nobre duque se inclina e lhe murmura ao ouvido:

— Tu não gostarias de comungar Nosso Senhor Eucarístico? — e lhe mostrou uma Hóstia consagrada.

— Porém é preciso que faças tua confissão.

— Eu quero muito — responde uma voz fraca — mas apressai-vos; eu vou morrer. Tenho fome deste Pão.

Eis minha confissão:

Não me recordo de uma só falta, a não ser que eu tinha feito o voto de jamais recuar um passo diante dos pagãos, e tenho muito medo de haver hoje faltado com a promessa feita ao bom Deus.

Guilherme do Nariz Curvo tira a Hóstia de uma teca que trazia ao peito, e a aproxima dos lábios entreabertos de Vivien, cujos olhos se iluminam.

A morte lhe desceu ao coração, quando acabou de fazer sua primeira comunhão.


(Fonte : “La Chanson de Guillaume”; “Extraits des Chansons de Geste” - Larousse, 1960, pp. 53; Funck-Brentano, “Féodalité et Chevalerie”)


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