Caravaca de la Cruz: andor da relíquia da Santa Cruz em procissão escoltada por cavaleiros cristãos |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Na cidade espanhola de Caravaca de la Cruz, região de Murcia se realiza todos os anos um rico e original cerimonial para adorar uma relíquia da Santa Cruz.
O Ritual do Banho da Santíssima e Verdadeira Cruz nasceu na Idade Média, quando Caravaca era terra de fronteira com o Reino muçulmano de Granada e constitui um dos mais antigos desse gênero.
A cerimônia vem sendo celebrada pelo menos desde o ano 1384.
Pelo fato das guerras contínuas promovidas pelos islâmicos contra os cristãos a procissão e adoração da Cruz foi sempre acompanhada por uma escolta militar.
Após a expulsão dos mouros do território espanhol invadido a Sagrada Relíquia da Cruz continuou saindo em procissão do Santuário até o ‘banho’, fora dos muros da cidade.
Este singular ‘banho’ consiste em que uma parte do relicário da Cruz é submergido nas águas limpas e claras da fonte e que banharão, ou regarão, as férteis terras.
O Templete onde está a fonte das águas que vão ser abençoadas |
A Solene Procissão do Banho
A procissão sai da Paróquia do Salvador em direção ao chamado Templete [Templinho], levando o augusto relicário com a cruz de Cristo em esplêndido andor de prata.
Simbolicamente desfilam confrarias de “Mouros” e Cristãos, precedendo o carro procissional da Cruz.
Quando este carro chega ao alto da encosta, onde se divisa o Templete, realiza-se a vistosa ré-encenação do Parlamento entre o sultão mouro Ceyt Abuceyt, e o rei São Fernando III o Santo, acontecido em 1231.
Diálogo entre o rei santo e o sultão
O Parlamento ou conversa prévia ao combate era frequente na Idade Média e visava um entendimento que evitasse a luta e o derramamento de sangue.
O diálogo entre os dois monarcas, na sua versão atual foi escrito por José Ortega Martínez, membro da Confraria da Vera Cruz de Caravaca, em 1883. (ver embaixo o vídeo)
Como conta a história, a reconciliação foi impossível e os dois líderes, o santo e o maometano, empurraram suas tropas para a batalha.
Desde o alto da encosta, uma grande Cruz preside o magnifico campo de batalha, e espera que se dirima a luta, a fim de descer majestosa para seu ‘banho’ nas águas do Templete.
Trata-se de uma das cenas históricas das mais sugestivas: os reis preparados, rodeados por suas respectivas hostes com espadas, cutelos, estandartes e bandeiras, enquanto a Cruz preside a discussão.
O sacerdote imerge a Cruz na fonte e abençoa as águas |
O posterior simulacro de combate, lembrança da batalha verdadeira acontecida outrora, dá lugar a uma luta desgarrada, insultos recíprocos, o triunfo da Cruz, sons de clarins, gritos, confrontos, ruídos de espadas, disparos e cheiro de pólvora dos trabucos, símbolos dos dois exércitos com cujas vozes as pessoas se animam.
A Bênção das Águas
Após o Parlamento e a batalha, realiza-se o Banho da Cruz e a Bênção das Águas.
A região é semiárida é a rega é fundamental. A devoção pedia que em sinal de impetração à Providência Divina que tudo rege com sabedoria, as próprias águas que iam fertilizar as terras fossem abençoadas especialmente.
Depois do ‘banho’, a procissão continua até a noite pelas ruas centrais da cidade até a Paróquia do Salvador, onde a relíquia fica exposta para adoração.
Tradução do Parlamento
Eis o texto do ‘Parlamento’ com as palavras do rei santo e do insolente chefe islâmico:
São Fernando: Convoquei-te, e vieste pressuroso à convocação; peço à minha Cruz bendita que o céu te faça ditoso.
Sultão: No Parlamento me anunciaram os sons de teus clarins, e venho saber as razões que te impulsionaram a tal. Sê breve.
São Fernando: Já o verás, pois assalta-me a impaciência em fazer cumprir minha consciência um sagrado dever.
Sultão: Diz, pois, cristão.
São Fernando: Sultão! Nossos bravos soldados, frente a frente situados, prontos para a luta estão.
O relinchar dos brutos e o ranger das couraças se ouvem quais ameaças de desolação e de luto. Logo os resplendores desse sol que nos ilumina se converterão em penumbra cheia de sangue e horrores.
E esse tapete matizado de violetas e tomilhos, e esses ternos passarinhos que cantam nos galhos, e essas fontes cristalinas nas quais se olham os céus, e esses mansos riachos, essas colinas bordadas, ruínas ficarão amanhã da destrutora guerra e não haverá um palmo de terra que não tenha uma tumba humana.
Sultão: Tétrica é a descrição que fazes da guerra. Crês que meu ânimo se aterra? Termina já o teu sermão.
São Fernando: Sê indulgente, grande Sultão, e um momento mais escuta.
Sultão: Vamos, cristão, à luta.
Caravaca de la Cruz: confraria de cristãos. |
Que não busques outra luz do mundo em nosso caminho que a do farol divino de minha Santíssima Cruz.
Que jamais ostentar deixes, essas relíquias mentirosas de seitas envilecidas, que obras são dos hereges.
Que te inspires em meu Deus, de Céus e Terra Rei, e de sua divina Lei caminheis sempre em pós.
Que apagues teu fero rancor e a fazer paz te decidas, para salvar estas vidas que vai ceifar o aço, e com nobreza e honra os exércitos unidos, a partir de hoje fiquem convertidos à graça do Criador.
O falar-te neste estilo já vês que não me envergonha, cumpri assim com minha consciência e espero o julgamento tranquilo.
continua no próximo post: Um diálogo sincero entre um rei santo e um ímpio maometano
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