Numa fria noite de Natal, em pleno século IX, o abade Dom João de Montemor, superior de todos os abades de Portugal, regressava à sua casa depois de haver celebrado.
Ao passar por uma das igrejas que havia no caminho, ia persignar-se devotamente, quando o pranto de um menino o deixou surpreso.
Aproximou-se da porta de igreja, e viu que na entrada havia uma criatura que tremia de frio. Com muita compaixão, tomou o menino, arrumou-o bem e o levou consigo ao seu palácio.
Grande foi a admiração de todos os familiares e serventes do abade, ao vê-lo aparecer com uma criança nos braços.
Explicou o ocorrido, e ordenou ao seu mordomo que dispusesse todo o necessário para que o menino abandonado fosse atendido devidamente. Com efeito, tudo de que necessitava foi-lhe proporcionado. E assim foi crescendo o menino, que recebeu o nome de Garcia.
O bom abade Dom João de Montemor, que havia já passado os umbrais da ancianidade, via com júbilo que aquele menino abandonado ia se fazendo galhardo mancebo, e certos temores que havia alentado se desvaneceram. Sucedia que o menino havia sido fruto do pecado, e o abade tinha medo de que no rapaz se demonstrasse a perversidade da sua origem.
Mas Garcia era galhardo e nobre, ainda que às vezes fosse um tanto vingativo e soberbo. Porém esses efeitos vinham do natural fogo da juventude e pelo mimo que havia recebido de todos.
Logo se viu, no entanto, que a incerta origem do mancebo ia germinar em frutos de traição para com aqueles que lhe salvaram a vida e lhe deram nome e lugar.
Por aqueles anos, as conquistas de Almazor e as vitórias que obtinha contra os cristãos haviam dado grande nomeada ao caudilho mouro.
Até Montemor chegara a fama do inimigo da Cristandade, e essa fama seduziu Garcia. Crendo que por sua origem não chegaria ao que ambicionava, e movido também por um torpe desejo de traição, saiu à noite do palácio do abade.
Tomando o caminho das terras dos mouros, apresentou-se a Almazor e ofereceu sua espada e seus serviços. Almazor aceitou comprazido, e desde então o traidor tomou o nome de Dom Zulema. E bem se distinguiu o renegado!
Como impelido pelas forças infra-humanas do ódio, era sempre ele quem rompia com mais impetuosidade as fileiras dos cristãos, não tendo repouso até que, depois das batalhas, por suas próprias mãos dava morte aos sobreviventes.
E assim foi Garcia tão amado de Almazor, que este o levou consigo à grande expedição em que o guerreiro mouro conquistou e arrasou Santiago de Compostela. Dom Zulema entrou também em Santiago, arrasando a casa de Deus. Na volta se dirigiu por conta própria contra Coimbra, que também destruiu.
Tinha tomado a secreta resolução de voltar a Montemor e ali fazer um terrível saque. Sua alma perversa e endurecida odiava todos os que o ampararam durante sua infância. E sua consciência não suportava que houvesse resquícios que lembrassem sua traição.
Com efeito, depois da tomada de Coimbra deu ordem a sua gente de dirigir-se a Montemor. Chegou à vila, e a contemplação dos lugares onde havia passado sua infância, longe de apaziguar seu ânimo, o irritou mais e mais, aumentando seu torpe desejo de destruir sua pátria natal.
E destacando seus esquadrões de infantes, pôs cerco a Montemor, cujos habitantes, já postos em alerta, se preparavam para a defesa. Porém esta era difícil, dada a enorme quantidade de mouros que tinham tomado as saídas, perdendo-se assim todas as esperanças de ajuda de fora que pudesse vir.
Os sitiados davam grande mostra de valor, infligindo enormes perdas aos assaltantes. Dom Zulema, no entanto, não cessava seu empenho, e ordenava assaltos e mais assaltos, que iam destruindo as minguadas defesas da vila, diminuindo assim o número de habitantes que podiam empunhar armas.
O abade Dom João de Montemor, vendo que tudo estava perdido e que não havia possibilidade de salvação, reuniu os chefes dos guerreiros e os homens de idade madura, e lhes disse:
— É chegada a nossa última hora. A cidade não tardará a cair nas mãos desses cães de Satanás. Temos de temer sobretudo pelas vergonhas e torturas que podem causar às mulheres e meninos. Eu proponho que demos morte a umas e outros, e que façamos uma suprema saída para não voltar, e em todo caso vender bem caro as nossas vidas.
E assim o fizeram. Derramando lágrimas de dor e de ira, cada homem deu morte a sua esposa e a seus filhos de mais tenra idade. Dom João degolou sua irmã, Dona Urraca, e seus cinco meninos. Depois reuniram todas as riquezas e fizeram com elas uma enorme fogueira, cuja fumaça subia, escurecendo o céu.
Como uma manada de leões, saíram os cristãos de Montemor. Lançaram-se contra a mourisma, e o desespero duplicou suas forças. O abade parecia um leão em meio de fraco rebanho, de tal maneira sua espada fendia a quem o enfrentava.
Chegou aonde estava Dom Zulema e se lançou contra ele, derrubando-o e cortando-lhe a cabeça. Ao ver caído seu caudilho, os inimigos fugiram em desordem, e lamentando o sítio, deixaram esparsas suas tendas e armas.
Voltaram à vila seus moradores, cheios de alvoroço pelo triunfo, porém também com grande tristeza de recordar aqueles a quem eles mesmos antes haviam dado morte.
Mas quando entraram pelas portas, ouviram gritos de júbilo e ação de graças. Ao desembarcar os guerreiros na praça, viram ali todas as mulheres e os meninos, que agitando ramos e palmas, gritavam:
— Vitória! Vitória! Glória a Deus!
Por milagre divino haviam ressuscitado, e dessa maneira se salvaram todos pela vontade de Deus e pela bravura do abade Dom João de Montemor.
(Fonte: V. Garcia de Diego, "Antología de Leyendas de la Literatura Universal" - Labor, Madrid, 1953)
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